Imagem: Deuses da Terra e do Céu, fotografia de Joel-Peter Witkin, 1988.
Por Rachel Pollack. Tradução de Ícaro Aron Soares.
A transgenereidade tem agora quarenta anos. Ou pelo menos o fenômeno moderno chamado transgenereidade tem quarenta anos, pois podemos definir o ponto de partida desse fenômeno como o início de dezembro de 1952, quando Christine Jorgensen voltou da Dinamarca para enfrentar repórteres que a questionavam sobre sua “afirmação de gênero”. Esses quarenta anos foram marcados por uma curiosidade escandalosa do público e pelas próprias pessoas trans tentando encontrar seu lugar na sociedade, seja por meio da ocultação de seu passado, seja por meio de pedidos isolados de compreensão. No entanto, à medida que mais e mais mulheres e homens passam por essa experiência, uma certa massa crítica é alcançada, produzindo autoconsciência entre as pessoas envolvidas, quase como uma geração espontânea. A transgenereidade começou a encontrar suas próprias profundezas arquetípicas, um movimento que se afasta da busca pela aprovação de outras pessoas e se dirige a uma exploração do que essa intensa jornada pode significar para aquelas que a realizam.
Devemos explicar aqui o uso dos termos “homem trans” e “mulher trans”. Comumente, e em grande parte da literatura médica, uma pessoa, digamos, que busca mudanças corporais de uma forma masculina para feminina é descrita como uma “pessoa trans masculina”. Tal designação não condiz com a percepção que a pessoa tem de quem ela é. Ela não remodela seu corpo porque se concebe como um homem que gostaria de ser mulher. Outras pessoas podem assumir isso e impor sua visão “lógica” de quem ela é. Mas a transgenereidade é sobre paixão, não lógica. Em sua paixão, ela se considera já uma mulher, com as mudanças hormonais e cirúrgicas mais uma confirmação do que uma transformação. O mesmo vale para homens trans (“do feminino para o masculino”), que se consideram homens apesar de uma anatomia externamente feminina.
Este artigo examina uma imagem arquetípica particular, a Deusa Afrodite, e suas ligações com mulheres trans. Em particular, aborda o mito de sua origem e sua importância como deusa da paixão e do corpo. Ele também explora a possibilidade de que esta estranha história da criação da Deusa deriva de práticas reais na Grécia e em outros lugares.
Crítica para a autoconsciência trans tem sido uma busca por ressonâncias arquetípicas em mitos e costumes espirituais em outras culturas e no mundo antigo. Como a experiência trans envolve técnicas cirúrgicas desenvolvidas nas últimas décadas, muitas pessoas a consideram um fenômeno totalmente moderno. Isso pode dar à experiência uma superficialidade que não condiz com a própria sensação da pessoa de algo com grande profundidade e mistério. Na verdade, a “transgenereidade” é uma abordagem moderna de uma condição tão antiga e difundida quanto a própria humanidade.
“Quando as imagens mudam, o corpo muda”, comentou James Hillman no Festival de Teatro e Mito de 1993 (em Avignon, França) em homenagem à Afrodite. A pessoa trans muda o corpo para cumprir uma imagem interna de si. Enquanto a imagem permanecer atrofiada, limitada pela cultura monoteísta que nega sua possibilidade e pela falta de profundidade arquetípica, a realização do corpo estará limitada. A transgenereidade é uma recriação da alma, assim como do corpo. Sem o conhecimento das possibilidades da alma, mulheres e homens trans muitas vezes permitem que seus corpos e seus anseios se tornem propriedade de outros - os médicos e terapeutas, os programas de entrevistas na TV e as autobiografias de fórmulas, os artigos chocantes dos tabloides, as feministas e os pornógrafos. Para a criação da alma, não é necessário que toda mulher trans explore os vínculos com Afrodite, ou a história da cirurgia de "afirmação de gênero” na Roma antiga. O que é preciso é que tais imagens se tornem conhecidas do mundo. Se a cultura como um todo contiver as imagens, elas atuarão no corpo e na alma, mesmo que uma pessoa em particular não as conheça.
Desde o surgimento moderno das pessoas trans, sua experiência tem sido em grande parte controlada por cirurgiões e psiquiatras. Como a intervenção médica é possível para mudar a forma externa do corpo, as pessoas procuram tratamento. E porque nossa sociedade retrata os psiquiatras como os depositários da sabedoria da alma, as pessoas angustiadas recorrem a eles em busca de ajuda. Assim, muitas pessoas trans têm procurado os médicos para lhes explicar quem são.
Nossa cultura acredita em causas. Ou seja, acredita em uma visão única de normalidade, com causa para qualquer desvio e, com sorte, cura. Quando a Igreja governava nossa consciência, Deus dava a visão e os sacerdotes a cura para os defeitos. Agora temos a “natureza” (pensada como uma força e não como uma Deusa), com médicos encarregados das curas. Pessoas trans, como todo mundo, tendem a acreditar nessa ideologia. Elas podem se preocupar por anos com o que causou seu problema e podem passar mais anos esperando que algum psiquiatra possa resolvê-lo.
A saída começa com a percepção de que ninguém pode curá-las de serem elas mesmas. Mas isso é um lugar-comum. Para torná-lo real, elas podem precisar descobrir e abraçar a Deusa dentro do desejo todo-poderoso da transgenereidade. Significativamente, mais e mais pessoas trans começaram a descrever sua experiência como “religiosa”. Davina Gabriel, uma ativista pelos direitos das pessoas trans e editora, escreveu que ninguém pode realmente entender a transgenereidade sem trazer algumas ideias de “transcendência”.
Na Conferência de Afrodite fiz uma leitura de Tarô para o evento, usando o Shining Woman Tarot (O Tarô da Mulher Brilhante), de minha autoria. A primeira carta sorteada, por embaralhamento aleatório, foram os Amantes (também conhecida como os Enamorados). A primeira imagem mostra um humano e um anjo em um beijo feroz. A imagem sugere um modelo para o trabalho de descoberta arquetípica - o profundo abraço do divino e do humano, do mito e da alma.
Nesse trabalho, Afrodite inspira a todas nós, pessoas não trans e pessoas trans, não apenas por causa de sua história, mas também por sua própria disposição de “ser pega”, como diz Nor Hall. Ela cairá em sua própria paixão com a mesma disposição com que inflama as outras. A poetisa Safo escreve: “Como um redemoinho agita sobre um carvalho, o amor treme meu coração”. Afrodite permite que seu próprio coração trema mais violentamente do que qualquer um de seus amantes. Ela não poderia inspirar amor sem a disposição de se render a ele. E assim, ela nos ensina, principalmente às pessoas trans, que não podemos compreender e liberar a força do desejo sem nossa própria entrega.
Nor Hall escreve, em These Women (Estas Mulheres), “A rendição ao desejo do corpo é em si uma fonte de revelação”. Nós, todas nós, só podemos abraçar nossas próprias almas imaginais através da rendição às suas demandas. Quando nos permitimos fazer isso, descobrimos quem somos. A maioria das pessoas assume que as mulheres trans são homens que de alguma forma decidem que gostariam de se tornar mulheres. O oposto é verdadeiro. Muitas mulheres trans lutam arduamente para serem homens, pois é isso que a sociedade e a evidência de seus próprios corpos (inalterados) lhes dizem que devem ser. Uma mulher que eu conheço tentou todas as identidades masculinas que ela poderia pensar – levantadora de peso, heterossexual sensível, drag queen, motociclista – antes de finalmente aceitar que não era nenhum tipo de homem, mas uma mulher, e sua tarefa não era apenas mudar seu corpo, mas descobrir exatamente que tipo de mulher ela era.
As pessoas assumem que mulheres e homens trans mudam seus gêneros e seus corpos de forma arbitrária ou por uma questão de preferência. Na verdade, a maioria das pessoas trans, como a maioria das pessoas em todos os lugares, prefere ser normal. A pessoa trans deve aprender e aceitar o que todos precisam aprender, que não podemos decidir de antemão quem somos ou que identidade gostaríamos de ter. Devemos descobri-la e criá-la. Para a mulher trans, essa descoberta torna-se mais aguda, pois a identidade que emerge de seu desejo está em total desacordo com o que o mundo vê e espera. Na relação entre desejo e identidade, homens e mulheres trans ensinam uma lição especial, pois para viver e dar algum sentido às suas vidas, eles devem se entregar totalmente a um desejo que não podem entender, definir ou controlar. Um conhecimento de modelos e imagens arquetípicas - não apenas no mito, mas nas práticas espirituais - dá a essa rendição a verdadeira profundidade da alma.
Algumas pessoas críticas à transgenereidade sugeriram que os médicos criaram o conceito, bem como as técnicas médicas. O termo “trans” foi, na verdade, cunhado por um médico, Harry Benjamin, como forma de distinguir uma condição particular da de “travestis” e “homossexuais”. No entanto, Benjamin não publicou seu trabalho até alguns anos após a cirurgia de Christine Jorgensen. Em sua autobiografia, Jorgensen descreve como ela (o pronome feminino se aplica, embora estejamos falando de uma época em que Jorgensen era exterior e fisicamente masculino) leu sobre a primeira síntese química do estrogênio, conseguiu obter uma quantidade significativa e depois sentou-se e segurou os comprimidos na mão, impressionada com o poder do que estava prestes a fazer.
A medicalização da transgenereidade atingiu seu ápice na década de 1970, quando passou a ser oficialmente classificado como transtorno psiquiátrico. Isso já começou a mudar, com a recente quarta edição do Diagnostics and Statistics Manual (Manual de Diagnóstico e Estatística) da Associação Americana de Psiquiatria declarando que “a transgenereidade per se” não é um distúrbio. Aqui também, crucial para este movimento de afastamento da transgenereidade como uma doença para uma expressão da humanidade tem sido a compreensão de suas antigas raízes e análogos.
Antes de examinar a história da Deusa, precisamos observar que falamos aqui apenas de mulheres trans. São as pessoas que o mito de Afrodite reflete e ilumina. Sua história diz respeito a uma transformação de uma forma masculina para feminina, e não o contrário. Há pelo menos um mito que pode falar da experiência dos homens trans, não como uma transformação de uma forma feminina em masculina, mas como uma reconstrução do corpo masculino. Esta é a história da morte e renascimento de Osíris. No mito, Set não apenas mata Osíris, mas o corta em quatorze pedaços que ele, Set, espalha pelo mundo. Podemos descrever essa condição como uma descrição mítica do senso de fragmentação do homem trans antes de começar a reconstruir sua vida e seu corpo. O mito também sugere a experiência da iniciação xamânica, que muitas vezes inclui alucinações severas de ser cortado em pedaços por demônios. Ísis, irmã e esposa de Osíris, encontra os pedaços e os junta novamente; o falo (o pênis), no entanto, está faltando. Como resultado, Ísis deve construir um falo de madeira, que ela anexa a Osíris.
Onde a mulher trans procura remover um objeto externo - mais precisamente, invertê-lo e internalizar sua sexualidade, pois a técnica cirúrgica moderna não remove, mas reconstrói os órgãos genitais - o homem trans busca construir algo, muito no sentido de Osíris. Assim como o mito de Afrodite pode refletir práticas antigas de cirurgia de "afirmação de gênero” autorrealizada, também é possível que a história de Osíris seja derivada de uma forma primitiva de xamanismo egípcio, na qual pessoas anatomicamente femininas assumiam identidades masculinas, incluindo o uso de falos de madeira.
Comparado com a história de Osíris, o mito de Afrodite é muito mais conhecido. Poucas pessoas, no entanto, analisaram os possíveis vínculos com mulheres trans. E, no entanto, esses vínculos são muito impressionantes. A história vem de Hesíodo. Embora tenha escrito depois de Homero, às vezes se diz que Hesíodo registrou as tendências mais antigas dos mitos. E como a história que ele conta se assemelha a outras deusas menos conhecidas, bem como a práticas reais do mundo antigo, podemos ver sua história como portadora de autoridade. É a história de Hesíodo que a maioria dos escritores subsequentes se voltam como a origem “oficial” de Afrodite. A etimologia usual para o nome dela, que significa “nascida da espuma”, deriva do mito de seu nascimento de Hesíodo.
Este mito começa com uma perturbação na criação. Urano, o deus do céu criado por Gaia como seu consorte, está oprimindo sua amante, sufocando-a com um abraço muito próximo. Ao mesmo tempo, ele despreza oa filhos gerados por suas uniões noturnas, de modo que, quando Gaia dá à luz, Urano agarra os filhos e os esconde na escuridão.
Para recuperar o controle, Gaia cria uma foice, um instrumento que por sua forma deriva da lua crescente. A foice originalmente pode ter sido uma invenção feminina, usada em tempos pré-históricos para acelerar a coleta de plantas silvestres. Em uma escavação em uma caverna alguns anos atrás, os arqueólogos encontraram uma lâmina de pedra curva que eles consideraram ser a arma de guerra de um chefe. Somente quando um dos pesquisadores pensou em examinar o instrumento com um microscópio é que encontraram, não vestígios de sangue, mas sim partículas vegetais. Se a forma lunar e o uso na colheita identificam a foice como feminina, isso sugere que o ataque a Urano será mais do que legítima defesa. Irá (re)afirmar a feminilidade como uma energia primária.
Gaia dá a foice a seu filho Cronos, que embosca seu pai, agarrando os órgãos genitais de Urano com a mão esquerda e cortando-os com a direita. A maior parte da literatura sobre esta história descreve Cronos como “castrando” Urano, assim como o deus Atis é descrito como castrando a si mesmo. O mesmo termo é usado na literatura histórica para a autocirurgia realizada pelas Gallae, as adoradoras frígias de Átis. Freud também usa o termo “castração” para descrever o medo do homem ao ver pela primeira vez o corpo feminino. Mas a castração na verdade significa apenas a remoção dos testículos. Em todos esses exemplos, começando com o mito grego, o ato é a remoção de todo o órgão masculino. A diferença é importante, já que os fazendeiros castram os animais para evitar que gerem filhos ou causem problemas no rebanho, e pensamos que a castração real seria suficiente para neutralizar Urano como um perigo para Gaia. Mas Cronos - e Átis, e as Gallae - buscam algo mais, a total remoção da masculinidade.
Cronos joga os órgãos genitais no mar, entregando-os ou devolvendo-os ao corpo feminino primitivo, descrito nas tradições científicas e mitológicas modernas como o útero de toda a vida. Não aprendemos o que acontece com o próprio órgão. Em vez disso, o mito nos conta como a ação levanta uma espuma na água. Dessa espuma surge a mulher perfeita, Afrodite.
Imagem: O Nascimento de Vênus, de Sandro Boticcelli.
Podemos descrever a Deusa do Amor como filha de Urano. As descrições feministas dela como filha de Gaia não correspondem à história real – a menos que consideremos a emasculação de Urano como um renascimento engendrado por Gaia. Há aqui uma relação interessante com a cirurgia trans contemporânea. Praticamente todos os cirurgiões de afirmação de gênero são homens e, portanto, análogos de Cronos. As mulheres trans, no entanto, veem a cirurgia como algo que as une ao mundo das mulheres. As neopagãs entre elas às vezes se descrevem como “filhas de Gaia”.
Algumas escritoras feministas assumem que Hesíodo, um misógino extremo, usou essa história para afirmar que Afrodite pertencia inteiramente à criação masculina, da mesma forma que Homero e Ésquilo descreveram Atena pertencendo ao masculino por causa de sua criação a partir da cabeça de Zeus. Isso faz pouco sentido, pois a história vem carregada de tanta ansiedade para os homens que dificilmente serviria para tranquilizá-los diante do poder feminino. Mais significativamente, Afrodite não mostra nenhuma conexão especial com Urano, como Atena mostra com Zeus. Ela não é realmente sua filha, mas sua substituta. O homem autoritário sofre a remoção de seus órgãos genitais e, a partir desse ato, a mulher, graciosa e apaixonada, passa a existir.
Imagem: A modelo trans Lea T posa como Afrodite/Vênus, na capa da revista Elle.
Afrodite pertence à terra, Gaia, pois a encontramos com frutas, com flores, com rosas e jacintos, papoulas e romãs. Ela pertence ao mar, onde saiu pela primeira vez nua da água. Mas ela também pertence ao céu, domínio de Urano. Descrita como “a dourada”, ela vem com o amanhecer. Pombas a atendem; ela cavalga pelo ar em carruagens de cisnes e gansos, pássaros conhecidos por sua beleza e ferocidade, pois Afrodite não é apenas graciosa e adorável, mas também cruel e impiedosa. Quando ela descansa, ela se senta em um trono de cisnes.
Mais importante por sua conexão com o céu, ela é identificada com o planeta Vênus, que leva o nome romano da Deusa. O movimento aparente do planeta Vênus (o caminho que ele faz no céu visto da Terra) forma uma flor de cinco pétalas durante um período de oito anos. Pelo menos uma planta com flores de cinco pontas é chamada de “espelho de Vênus”.
Afrodite é frequentemente retratada segurando uma maçã. A maçã também liga a Terra e o céu, Gaia e Urano, pois se cortarmos uma maçã em duas horizontalmente, encontraremos uma estrela perfeita de cinco pontas. O céu é a casa de Afrodite e sua origem. Mesmo a contragosto, Urano sacrifica seu próprio sexo para criá-la. E então ele se retira, mergulhando fundo no limbo perdido do Tártaro - da mesma forma que se pode dizer que a persona masculina das mulheres trans se retira quando o eu feminino emerge completamente.
Os paralelos entre Afrodite e as mulheres trans modernas seriam impressionantes o suficiente se sua história fosse totalmente isolada. De fato, encontramos outras imagens de Deusas emergindo das partes ou corpos de Deuses emasculados. As Deusas são muitas vezes retratadas como apaixonadas, poderosas e criativas, como se a transformação tivesse completado um processo de desenvolvimento. Ou, o Deus pode ser visto como fora de controle, perigoso, como Urano, com a Deusa emergente tendo uma influência mais produtiva.
Em Amato, os devotos da deusa local assimilada à Afrodite descreviam a divindade como possuidora dos “dois gêneros”. Eles a chamavam de Afrodito. De acordo com Robert Graves, os hititas descrevem como Kumarbi morde os órgãos genitais do deus do céu Anu e depois cospe a semente (isto é, o sêmen) em uma montanha para produzir uma deusa do amor. Graves considera esta história uma fonte da criação de Afrodite. Kerenyi descreve como um filho de Hermes e Afrodite, a saber, Hermafrodito, recusa o amor da ninfa Salmacis, mas depois mergulha em sua fonte. O deus e a ninfa se fundem.
As figuras mais significativas neste contexto são o deus/deusa Agdisto e seu filho Átis. Agdisto foi descrito como hermafrodita, mas também arrogante e perigoso (podemos nos lembrar aqui do mito de Zeus de Platão dividindo os humanos hermafroditas para limitar sua completude). Para domar Agdisto, Dionísio amarra a parte masculina de seus órgãos a uma árvore. Quando Agdisto acorda, o falo incha e um movimento súbito o corta.
Este ato horrível não leva Agdisto a ficar aleijado, retraído ou enfurecido. Pelo contrário, Agdisto agora surge como Cibele, a deusa frígia descrita mais tarde em Roma como a “Grande Mãe dos Deuses”. A remoção do órgão masculino parece abrir caminho para a emergência plena do feminino. Mais tarde no mito, o filho de Cibele, Átis, tenta imitar Agdisto, com uma cirurgia autorrealizada (embora alguns relatos afirmem que Ártemis envia um javali para escorná-lo; os frígios consideravam Ártemis outro nome para Cibele, uma associação que pode ser confusa para aqueles que conhecem Ártemis apenas em sua forma clássica de caçadora virgem).
Divindades e heróis que mudam de gênero ou se travestem aparecem repetidas vezes na mitologia grega. Às vezes, são figuras de comédia, como quando a mãe de Aquiles o veste de mulher para protegê-lo da guerra, ou quando Héracles (mais conhecido como Hércules) deve usar roupas femininas como uma humilhação. Às vezes há uma ligação com a loucura, como quando o rei Penteu se veste de mulher para se infiltrar entre as bacantes, que o descobrem e o despedaçam na peça As Bacantes de Eurípides. Ou o cruzamento de gêneros é apenas sugerido, como quando Níobe zomba de Leto por ter uma filha masculina (Ártemis) e um filho feminino (Apolo).
Além de Agdisto e Afrodite, a divindade de gênero cruzada mais significativa no mito grego é Dionísio. Não é por acaso que Dionísio deve ser o deus chamado para emascular Agdisto. Chamado de “o feminino” ou “o híbrido”, Dionísio foi criado como uma menina. De acordo com Arthur Evans em “The God of Ecstasy, O Deus do Êxtase”, os seguidores de Dionísio às vezes incorporavam o deus como um poste decorado com um vestido e uma barba. Evans descreve como as mulheres adoradoras do Deus se vestiam como homens, com longos falos, uma imagem que lembra o pênis de madeira de Osíris. Os adoradores do sexo masculino assumiam as roupas e os papéis das mulheres. Evans cita esta descrição de Diodoro da Sicília: “... de corpo bastante macio e delicado, superando de longe os outros em sua beleza e devotado ao prazer sexual.” Essa última frase traz Dionísio ao reino de Afrodite, lembrando-nos que o “êxtase” nos tira de nós mesmas, mas não de nossos corpos. A transgenereidade é um movimento de paixão e êxtase. O corpo é seu veículo e não seu destino.
A função de Dionísio como um “deus do êxtase” o vincula à arcaica estrutura religiosa chamada de “xamanismo”, pois Mircea Eliade mostrou que o transe extático é a principal experiência e fonte de poder do xamã. Claro, a expressão por si só não demonstraria uma conexão entre Dionísio e xamanismo. Mas o mito - e as práticas das seguidoras do deus - sugere essa conexão de forma muito poderosa.
Aquiles disfarçado se revela quando escolhe uma espada em vez de presentes mais femininos. Dionísio, porém, ao receber diversos brinquedos quando criança, opta pelo espelho, atributo feminino, não apenas por sua preocupação com a beleza, mas também por seu poder de reflexão lunar. O espelho o prende e as forças demoníacas o desmembram e o jogam em um caldeirão fervente. Agora, esta história reflete exatamente os terrores do transe de muitos xamãs, que são cortados em pedaços (como Osíris), fervidos vivos e, de outra forma, quebrados para permitir um renascimento como um novo ser - geralmente em um novo gênero. (Há também um paralelo comovente na vida de muitas mulheres trans, que quando crianças se esforçam muito para esconder sua feminilidade, pois sabem que deslizes como escolher o brinquedo errado podem resultar em punições severas, incluindo bullying ou humilhação. Psiquiatras que tratam das chamadas crianças com “conflito de gênero” costumam preparar armadilhas para suas pacientes involuntárias exatamente dessa maneira. Eles definirão uma seleção de brinquedos, como bonecas e revólveres de brinquedo. Se a criança faz a escolha "inapropriada", ele ou ela é punida e ridicularizada.)
As mênades, ou bacantes, as seguidoras de Dionísio, eram descritas como assumindo características masculinas sob o poder do deus. Seu comportamento era considerado masculino (bem como descontrolado), e seus próprios corpos expressavam masculinidade, pois permaneciam rigidamente eretos, como falos. Elas também adquiriam poderes xamânicos. Elas poderiam correr descalças na neve por quilômetros. Elas enrolavam serpentes em seus cabelos sem serem mordidas. As mênades não alteravam seus corpos por meio de cirurgia, mas por transe. Elas se tornaram transe-gêneros.
Os xamãs ganham poderes de profecia. Nesse sentido, podemos descrever o vidente Tirésias como o próprio modelo de um xamã. Seu nome, que significa “aquele que se deleita em sinais”, ocorre com bastante frequência nas histórias gregas de diferentes localidades para sugerir que “Tirésias” era um termo genérico para profeta. Tirésias ganha seus poderes, pelo menos indiretamente, ao mudar de gênero. Ao se deparar com duas serpentes copulando, Tirésias mata a fêmea e se transforma em mulher. Depois de sete anos, ela vê uma visão semelhante, mata o macho e mais uma vez se torna um homem, mas agora com uma sugestão de hermafroditismo, o poeta T. S. Eliot descreve Tirésias como “um velho com a boca enrugada”. Nas notas de “The Wasteland (A Terra Desolada)” Eliot chama Tirésias de personagem principal do poema. (O próprio nome do poeta pode levar os leitores de um futuro distante a considerá-lo ele próprio um personagem mitológico; “Eliot” é uma variação de “Eliahu” que significa “Deus é o senhor”, enquanto “TS” é a abreviação padrão de “trans").
De acordo com o mito clássico, Zeus e Hera discutem para saber quem recebe mais prazer no sexo, se é o homem ou se é a mulher. Cada um insiste que o outro tem a vantagem (Zeus diz que é a mulher, enquanto Hera diz que é o homem). Eles perguntam a Tirésias, e quando ele diz que é a mulher, Hera em sua fúria o deixa cego. Tirésias então recebe de Zeus o dom da profecia em compensação. Sem ignorar a história que chegou até nós, podemos adivinhar que ela pode refletir uma imagem mais antiga do vidente que ganha poderes proféticos ao fundir os gêneros e voltar a visão para o seu interior.
Robert Graves nos conta que, no sul da Índia, os homens temem que ver serpentes se acasalando produza a “doença feminina”, que Graves diz ser o nome de Heródoto para a homossexualidade. Isso levanta um ponto importante. Nenhuma das histórias gregas sobre cruzamento de gênero sugere qualquer coisa sobre o desejo pelo mesmo gênero, ou atividade sexual de qualquer tipo, além da mudança de identidade. Apesar das histórias que afirmam que Tirésias passou seus sete anos na forma feminina como uma prostituta, é claro que Tirésias não muda de homem para mulher e vice-versa para seduzir alguém ou para desfrutar do gênero de um lado diferente, mas como um mistério de si mesmo.
Hoje, muitas pessoas assumem que as mulheres trans são de alguma forma uma manifestação extrema da homossexualidade masculina. Ou elas devem ser homens efeminados que se identificam totalmente com as mulheres e querem imitá-las, ou então são consideradas homossexuais que odeiam a si mesmas que não podem aceitar seus desejos e, portanto, devem se tornar mulheres para parecerem “normais”. Essa suposição erra o ponto sobre a transgenereidade, que se concentra em sujeitos em vez de objetos. É uma paixão de si mesma, não dos outros.
Dizia-se que a rainha Vitória negava a possibilidade de lesbianismo, alegando que, como as mulheres odiavam sexo e só o toleravam por causa dos homens, por que duas mulheres fariam qualquer coisa, sem um homem para obrigá-las? As pessoas às vezes expressam uma atitude semelhante em relação às mulheres trans lésbicas. Já que elas assumem que os homens mudam de gênero para ter relações sexuais com homens, por que um “homem” mudaria de gênero para fazer amor com mulheres? A resposta está no fato de que a mulher trans nunca pensa em si mesma como um homem em primeiro lugar, e sua “mudança” é feita para atender a uma necessidade interna, não externa.
Uma sociedade baseada no monoteísmo assume que as pessoas são uma coisa, e apenas uma coisa, e que esse eu monolítico nunca pode mudar. Assim, presume-se que alguém nascido com pênis é homem, deseja mulheres quando adulto e exibe comportamento masculino. Nossa cultura atribui quaisquer modificações desse padrão às doenças, educação distorcida ou deficiência genética.
Mulheres e homens trans demonstram a in(ter)-dependência de quatro fatores separados: sexo anatômico, identidade de gênero, preferência sexual e papel de comportamento. Muitas mulheres trans (algumas dizem até um terço ou até a metade) são lésbicas. Uma alta porcentagem semelhante de homens trans são pessoas homossexuais.
Considere o exemplo da mulher descrita acima, que tentou todos os papéis masculinos que pôde imaginar antes de se render ao conhecimento de si mesma como mulher. Ela não fez cirurgia de afirmação de gênero e, portanto, permanece genitalmente masculina, apesar do desenvolvimento de seios e quadris redondos devido à terapia hormonal. Ela também é naturalmente muito bonita. No entanto, ela anda de moto e se veste com jaquetas de couro, camisetas rasgadas, jeans e botas pesadas. E ela é lésbica, vivendo por vários anos com uma lésbica de longa data que não tem dúvidas de que sua linda parceira motociclista é uma mulher.
Os xamãs que mudam de gênero geralmente o fazem principalmente mudando suas vestes e sua função social na comunidade. No mundo antigo do sul da Europa e do Oriente Próximo, pessoas com anatomia masculina mudavam seus corpos, cortando seus órgãos genitais masculinos para assumir aparência e identidades femininas. O contexto em que realizavam esses atos era o da adoração sagrada de uma poderosa Deusa e, como resultado de seu sacrifício voluntário, elas geralmente se tornavam sacerdotisas.
Temos conhecimento dessa prática na Ásia Menor, Norte da África, Índia, Arábia, Canaã e outros lugares. A Bíblia nos dá evidências indiretas da prática sobrevivente na antiga Israel, com sua proibição: “Aquele que for ferido nas pedras ou tiver seu membro decepado não será admitido na congregação do Senhor”. (Deuteronômio 23:2) A Bíblia tende a proibir tudo o que pertence à religião concorrente da adoração da Deusa (como o mandamento contra o plantio de árvores em lugares sagrados). De fato, o rabino J. H. Hertz, em um comentário sobre esta passagem, escreveu: “Os primeiros a serem excluídos são as pessoas automutiladas ou as ageneras a serviço de algum culto pagão”.
A versão mais documentada dessas sacerdotisas que afirmam o gênero são as Gallae, as adoradoras frígias de Cibele que acompanharam sua deusa a Roma. Acompanhadas por danças e cânticos, e em estados de êxtase, as iniciadas Gallae “desgenerizavam” a si mesmas, usando foices de pedra, um instrumento que não só lembra Urano, mas também aponta para os tempos pré-históricos. Elas então corriam pelas ruas, jogando os órgãos genitais decepados nas portas abertas para elas. A oferta era considerada uma bênção pela família que a recebia, e em troca, eles cuidariam da Galla até que ela recuperasse a sua saúde. Quando curada, a Galla recebia cerimoniosamente roupas de mulher e, vestida de noiva, entrava a serviço de sua Deusa.
Os romanos exibiam atitudes ambivalentes em relação às Gallae. Enquanto alguns as desprezavam, chamando-as de eunucos, ou “zangões”, outros, como o poeta Catulo, as tratavam com respeito. Há pouca dúvida de que elas se consideravam mulheres, ou que seu lugar proeminente no culto de Cibele derivava de sua afirmação de gênero. Algumas feministas modernas, como Merlin Stone, sugeriram que o patriarcado emergente criou as Gallae como substitutas das mulheres sacerdotisas, como uma forma de reivindicar a Deusa para os homens. A evidência, no entanto, apoia quase o oposto. As Gallae, e suas contrapartes em outras culturas, pertencem a uma linhagem de religião muito antiga e profundamente enraizada na adoração de Deusas-mães. A presença delas perturbava profundamente a consciência patriarcal, como mostra a proibição hebraica. A lei romana proibia qualquer homem não frígio de se tornar Gallae.
As práticas arcaicas continuam até hoje, na Índia, com adoradoras da Deusa conhecidos como Hijras (o nome lembra “Frígia”, embora eu não saiba de nenhuma pesquisa ligando os dois nomes). As Hijras removem seus órgãos masculinos em uma cirurgia realizada por uma “dai ma”, geralmente uma líder, ou guru, na comunidade Hijra local. Antes dos britânicos proibirem a prática em 1888, a cirurgia era realizada nos templos da Deusa Bahuchera, uma variante de Durga. A Hijra iniciada, durante a cura, come uma dieta semelhante à das mulheres após o parto. Quando curada, ela recebe roupas de mulher, às vezes vestido de noiva, como as Gallae. As hijras se vestem como mulheres, e muitas se descrevem como mulheres, embora pessoas de fora muitas vezes as considerem um terceiro gênero, ou gênero neutro, porque não podem ter filhos. Qualquer que seja sua função religiosa original, elas agora se apresentam em festivais e casamentos, onde abençoam o noivo. Elas são popularmente consideradas como tendo o poder de causar impotência nos homens. Curiosamente, quando o mortal grego Anquises descobre que sua misteriosa amante é na verdade Afrodite, ele implora a ela que não o torne impotente. Uma conexão mais positiva com a Deusa Grega remonta à época dos mongóis na Índia, quando as Hijras realizavam um ritual conhecido como “solah sringar” para preparar cortesãs para encontrar seus amantes.
A diferença entre as Gallae ou Hijras e as mulheres trans modernas pode ser de origem cultural e suposições. Na Índia de hoje, as Hijras são mais frequentemente de casta inferior e origens tradicionais, enquanto aquelas pessoas que se identificam como “trans” vêm da classe média ocidentalizada (as sofisticadas técnicas cirúrgicas de “afirmação de gênero” são proibidas na Índia, juntamente com as operações mais grosseiras das Hijras). Ao mesmo tempo, algumas mulheres trans no Ocidente começaram a olhar para as Hijras como uma forma parcial de abordar essa intuição de “transcendência” no que fizeram. As Hijras e as Gallae dão substância às palavras de Dallas Denny, ativista política, pesquisadora médica e editora da revista Chrysalis: “A transgenereidade é uma experiência religiosa”.
E a transgenereidade é uma experiência apaixonante, movida por uma absoluta convicção interior. Não é por acaso que Afrodite, a deusa nascida dos genitais decepados de Urano, seja a deusa do amor, do corpo e de seus desejos, em vez de, digamos, do lar, da ciência ou da felicidade doméstica. E não é por acaso que o deus de gênero cruzado, Dionísio, deveria ser o deus do êxtase.
A mulher trans sabe que é mulher da mesma forma que conhecemos uma revelação. Ela sabe disso apesar de todo o bom senso, apesar de todas as evidências de seu corpo e de sua criação. Ela sabe disso apesar de todos os seus esforços, sua batalha heroica, para resistir a esse conhecimento. Ela sabe disso no momento em que aceita que sabe, quando se entrega ao desejo do corpo. Pois, ao contrário do clichê popular, ela não está presa no corpo errado. Ela vive exatamente no corpo certo, embora possa estar presa na cultura errada, com sua insistência de que seu conhecimento é uma doença ou um pecado, e certamente uma ilusão. É o corpo que a conduz à revelação, que sabe do que precisa. Ela não pode conhecer a si mesma até que aceite o que sua paixão lhe diz, que ela é uma mulher, e somente mudando seu corpo ela pode se tornar sua própria verdade.
No Festival de Teatro e Mito, Laurence Louppe disse sobre a obra de Leonardo Da Vinci: “O corpo revela a verdade, da qual é o portador”, e ainda: “Sabemos também que Da Vinci era um devoto” de Afrodite. Após a morte de Da Vinci, seu trabalho mais secreto revelou experimentos realizados em cadáveres para explorar a possibilidade de cirurgia de afirmação de gênero.
O impulso trans aparece em todo o mundo, e sempre como uma paixão. Nas palavras de Camille Moran, ativista trans, “Nós sempre estivemos aqui, estávamos aqui quando a Terra era um espírito verde. Éramos uma ocorrência natural em um mundo cantante.”
Para a mulher trans, a paixão e a revelação vivem em seu próprio corpo e no corpo de Afrodite, que a precedeu e que a inspira.
Sobre a Autora
Rachel Pollack é autora de dez livros de não ficção, além de quatro romances, incluindo o premiado Unquenchable Fire. Ela é a criadora do Shining Woman Tarot e foi descrita (pelo jornalista Erik Davis) como “a escritora de Tarô mais interessante do planeta". Ela escreveu e deu muitas palestras sobre transgenereidade, incluindo um discurso para o Conselho da Europa de quarenta nações.
FONTE
Aphrodite - Transsexual Goddess of Passion, por Rachel Pollack.
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