O Sufismo Sombrio de "O Caminho Negro"

Por T. L. Othaos. Tradução de Icaro Aron Soares.

Mencionei anteriormente que estava pensando em fazer posts do tipo "Eu li este livro, para que você não tenha que ler". O post atual é dessa natureza. Seu foco é um livro intitulado O Caminho Negro (The Black Path), que descreve uma suposta variante do Caminho da Mão Esquerda do Sufismo. Tenho a impressão de que há controvérsias tanto com o grupo descrito nele, quanto com o trabalho em si. Independentemente disso, descobri que muitas ideias neste livro dialogavam com minha própria espiritualidade. Daí meu desejo de mencionar algumas delas aqui.

Introdução: O Caminho Negro é um Livro Controverso?

Antes de entrar no que me interessa em O Caminho Negro, vale a pena reconhecer algumas coisas:

1. O Caminho Negro é uma publicação da Martinet Press. Esta editora é infamemente associada ao Tempel ov Blood, uma ramificação da Ordem dos Nove Ângulos (ONA/O9A). Basicamente, adicione vampiros ao típico absurdo de terror nazista da O9A e você terá uma ideia geral do ToB.

2. O livro descreve um grupo “satânico” cujas práticas destacam o sacrifício de animais.

3. A seita específica em torno da qual o livro gira pode ser parcial ou totalmente fictícia. ou seja os responsáveis pela publicação podem tê-la produzido com intenções propagandísticas ou outras ocultas.

4. Se a seita for “real”, fica bem claro que é uma “prática fechada”, ou seja, requer iniciação, estudo com um mestre, etc.

Dado 1, enfatizo que o endosso de parte de um livro como este não é endosso do todo. Nem precisa implicar endosso de outros livros da mesma editora. (Eu li o Iron Gates (Portões de Ferro) e o Liber 333, e não achei nenhum deles particularmente cativante.) O princípio é o mesmo do “Satanismo Tenebroso pode se inspirar na O9A sem endossar tudo o que a O9A representa”. Se você não vê isso como um conceito válido, este blog não é para você.

Sobre o 2, Eu pessoalmente não endosso o sacrifício animal. Portanto, acho tais práticas descritas no livro antropologicamente interessantes, mas não relevantes para minha práxis.

Finalmente, sobre 3 e 4: esta entrada não está tentando apresentar "fatos" sobre um grupo "real" com qualquer olho para "autenticidade". É apenas "Eu li esta coisa, ela diz isso, e aqui está como ela se cruza de forma interessante com minhas próprias crenças". Eu poderia fazer o mesmo exercício com uma escritura religiosa obscura, uma etnografia acadêmica ou um romance de fantasia.

CONTEÚDO GERAL DE O CAMINHO  NEGRO

Como uma visão geral para aqueles que possam estar curiosos sobre o livro, O Caminho Negro é subdividido da seguinte forma:

Introdução

O livro abre com um relato narrativo de um ocidental que encontra grupos sufis não tradicionais na Argélia e na Tunísia. Ele observa um ritual no qual os djinn possuem pessoas, que destroem um carneiro com as próprias mãos. O nome do líder do grupo é Cheikh Azzedine. Azzedine conta ao narrador uma história sobre como, em sua juventude, ele sofria de extrema "doença espiritual" / possessão, culminando em uma experiência mística na qual Azazel o inspirou a fundar uma forma "satânica" de Sufismo. O ocidental fica intrigado com tudo isso e conclui que sua "vocação" é apresentar as doutrinas e práticas de Azzedine ao mundo - ou seja, daí o livro que você está lendo.

Capítulo Um: Origens

Esta parte fornece um pouco de história. Ela distingue entre os Aissaoua, o Sufismo que se encontra nesta parte da África com o qual os muçulmanos tradicionais se sentem desconfortáveis, e a subvariante ainda mais herética de Azzedine. Ela inclui uma visão geral de alto nível da cosmologia do grupo, estrutura organizacional, etc.  Tenho a impressão, a partir de algumas pesquisas na internet, de que a parte geral dos Aissaoua dessa informação é pelo menos um pouco legítima. Minha incapacidade de encontrar qualquer coisa sobre os Azzedinis que não remeta a este livro, no entanto, é o motivo pelo qual hesito em relação a: a subvariante é "real" ou o quê.

Capítulo Dois: Instruções

Enquanto a seção anterior envolvia descrição em terceira pessoa, esta seção envolve Azzedine explicando conceitos filosóficos-chave em primeira pessoa. O narrador faz um relato das próprias palavras do Cheikh sobre tópicos como “o Segredo”, Bay'ah (Iniciação), Tariqa (Loja Esotérica), Wahsh (a “Besta”) e O Shaitan.

Capítulo Três: Práticas

Esta seção descreve a configuração de espaços rituais, ferramentas usadas em rituais, técnicas devocionais e fluxo geral de rituais. Ela também destaca vários djinn específicos que são chamados por grupos sufis nesta parte do mundo. A imagem resultante, dominada pelo transe extático como é, é mais evocativa do Vodu do que das práticas islâmicas tradicionais.

* * *

Imagino que o caso da “prática fechada” seja bem evidente, mesmo pelo pouco que descrevi aqui. A tradição envolve iniciação e estudo sob um mestre, dentro de um grupo exclusivo. O livro descreve rituais vagamente, permitindo que alguém os imagine, mas sem informações suficientes para realizá-los por conta própria.

Portanto, não vou fingir que entendi o conteúdo deste livro sob qualquer outra coisa que não seja minha própria linguagem espiritual. O que eu compreendi, no entanto, atingiu um acorde muito mais forte em mim do que eu normalmente consigo lendo, digamos, a maioria dos livros luciferianos.

CONCEITOS EM O CAMINHO NEGRO QUE ME ATRAEM

Visão Geral da Cosmologia

O Capítulo Um de O Caminho Negro descreve a cosmologia geral dos Aissaoua. Alá cria três mundos, cada um vindo a ser habitado por diferentes tipos de seres: profetas e anjos no celestial, djinn e humanos no terrestre, fantasmas e demônios no infernal. Todos devem reconhecer Alá como supremo, mas alguns humanos e djinn se rebelam contra ele. Dois caminhos permitem a salvação do fogo do inferno. O primeiro é a religião, ou seja, fazer guerra contra os próprios impulsos animais e superá-los, conforme o Islamismo tradicional. O outro é o esotérico, ou seja, em vez de superar os impulsos animais, transmutá-los em forças. Esta é a abordagem dos sufis Aissaoua “normais”.

A seita dos Aissaoua de Azzedine, no entanto, acredita em algo diferente. Vou parafrasear da seguinte forma:

1. No começo, tudo o que existe é “o Absoluto” (Haawiya), um estado não-dual além da existência e da não-existência. Ele é cheio de “seres primordiais que são emanações de sua natureza, dos quais o mais importante é o Shaitan.”

2. Dentro do Absoluto, surge uma entidade chamada Luz. Ela vê o Absoluto como algo a ser conquistado e subjugado, e se frustra em sua tentativa de fazer isso.

3. Quando a Luz percebe que não pode superar o Absoluto, ela sai furiosa: "Então vou criar meu próprio Universo!" Para fazer isso, no entanto, ela deve roubar energia/substância do Absoluto.

4. O Shaitan busca reintegrar o que a Luz roubou do Absoluto. Outros seres primordiais apoiam sua causa e o auxiliam.

5. Algumas criações da Luz são capazes de sentir algo “errado” com a existência em que se encontram. Essas se rebelam e fazem causa comum com o Shaitan.

6. O caminho da “religião” transforma os seres em escravos ideais da Luz. O caminho “esotérico” – ou seja, o “Caminho Negro” – usa práticas e valores antinomianos para reajustar o praticante com o Absoluto.

Observações sobre Cosmologia

Ao ler o que acabei de descrever, fiquei impressionado com um paralelo entre esses conceitos e os meus. O Haawiya é comparável ao Vazio Abissal da Escuridão. Os seres primordiais me lembram dos Sinistrais, e a Luz e suas forças dos Celestiais. Os primeiros estão familiarizados com a natureza “verdadeira” da existência, enquanto os últimos estão em negação, resultando em comportamento disfuncional.

Isso não quer dizer que minhas próprias crenças correspondem às de Azzedine em todos os aspectos, pois observe as seguintes diferenças:

  • Acredito que os seres se tornam individualizados por terem tido uma experiência da carne em algum momento. Certamente, existem Antigos que tiveram essa experiência há muito tempo, tornando-se e permanecendo Sinistrais depois disso. Eu não percebo os Sinistrais como "emanações" da Escuridão inerentemente, no entanto. Em vez disso, todos os seres são "da Escuridão", vs. tornar-se um "Deus Obscuro" é mais uma questão de escolha e experiência do que de essência inerente.
  • Não concordo com a noção do mundo ter um criador intencional. Vejo-o como emergindo da Escuridão organicamente.
  • O que eu pessoalmente chamo de “a Luz” é mais uma facção do que um ser específico.

Deixando essas diferenças de lado, porém, o impulso geral dessa narrativa me atrai muito. O ponto-chave aqui é que, embora se assemelhe ao Gnosticismo, ela rejeita o antimundanismo que tanto desgosto nessa filosofia. Transcender o mundo não significa renúncia, afirma, já que o mundo ainda é um reflexo do Absoluto. Ela também enquadra o objetivo da “reunificação” como expansão do eu, não aniquilação. Por meio de tais detalhes, ela evita tropos típicos do Caminho da Mão Direita da autonegação.

Entidades

Ao entrar em mais detalhes sobre os rebeldes contra a Luz, O Caminho Negro menciona que há duas facções. Uma é liderada por Iblis. A outra é liderada por Azazel.

Isso funciona para mim em alguns níveis :

1. Como expliquei anteriormente aqui, os Sinistrais podem ter várias histórias de fundo: i) costumava ser um Telurico (ou seja, espírito intimamente envolvido com realidades mundanas, conforme eu classificaria os djinn); ii ) costumava ser um Celestial (ou seja, espírito antimundano que posteriormente mudou de ideia); iii) foi direto de encarnado para ser um Sinistral (ou seja, seu tipo estereotipado de entidade de abominação lovecraftiana). Em meus termos, então, a facção liderada por Iblis de Azzedine é o i, a facção liderada por Azazel é o ii, e os "primordiais" são o iii.

2. Como mencionei aqui, vejo Lúcifer e Shaitan como duas figuras separadas. Minha impressão disso é parcialmente baseada em que eles não têm os mesmos motivos: altos ideais, amor ao conhecimento e intenções construtivas predominam em um caso; ódio à hipocrisia, ultrapassagem de limites por si só e desejo de vingança no outro. Na minha própria compreensão dos Nekalah, Noctulius se encaixa no primeiro arquétipo, e Satanas (também chamado de “Shaitan”) no segundo. Assim, usando os termos de Azzedine, Noctulius seria meu “Azazel” e Satanas/Shaitan meu “Iblis”.

Nota: a demonolatria tem suas próprias visões sobre quais desses seres são/não são “os mesmos uns dos outros”. Preciso ler mais sobre isso em relação a: essas pessoas acham que Lúcifer e Azazel são iguais, relacionados ou totalmente diferentes. Então, sobre esse assunto, não estou fazendo nenhuma afirmação sobre “o que o Satanismo Teísta pensa”, exceto em relação ao meu próprio caso.

O Segredo e a Besta

Esses são dois conceitos descritos no Capítulo Dois de O Caminho Negro. Ambos são elos espirituais com o Absoluto.

O Segredo é um elo ativo com o Absoluto. Azzedine oferece uma analogia estendida a uma chama, passada de si mesmo para seus seguidores. Ele também diz que é “uma pequena parte do Haawiya que existe neste mundo, assim como este mundo está realmente dentro do Haawiya” e “o sopro do Shaitan”. É tanto uma fonte de poder espiritual quanto uma força que transforma o praticante de uma maneira “obscura”.

A Besta, por outro lado, é um elo passivo com o Absoluto. Ela tem uma semelhança com o que o Ocidente pode chamar de “alma apaixonada” e o que o Oriente pode chamar de “rajas”. A visão de Azzedine é Mais sombria que essas, no entanto, descrevendo-a como um “monstro” interior, sempre bravo com a “incorreção” da existência. Essencialmente, é uma parte do Absoluto dentro de cada pessoa que sabe que a Luz a aprisionou. Por causa disso, os humanos se rebelaram contra Alá basicamente assim que ele os criou. Durante as experiências de possessão de Azzedini, ela consegue “ser ela mesma”, por meio de comportamento predatório e caótico.

Ambos os conceitos são evocativos do que me vem à mente com a frase satânica “A Chama Negra”. Eles também me lembram da interpretação do enxofre alquímico em algumas obras da O9A – ou seja, enxofre, não mercúrio, sendo o elemento alquímico mais evoluído. O ponto, em ambos os casos, é que as práticas do Caminho da Mão Esquerda podem despertar capacidades internas sinistras. Em um sentido, a Escuridão é uma realidade interior sempre presente, envolvida na dinâmica do desejo e afirmação crus e animalescos (Besta). Em outro sentido, porém, a consciência da Escuridão é algo que se alcança por meio do esforço espiritual, capacitando-o a se esforçar ainda mais (o Segredo).

Considerações Finais

A discussão completa de O Caminho Negro sobre os conceitos acima contém muitas nuances e paradoxos que não posso comunicar completamente aqui. Essa complexidade é parte do motivo pelo qual acho o livro evocativo, no entanto. Meu pensamento sobre o  Vazio Abissal da Escuridão contém complicações semelhantes. Em ambos os casos, elementos autocontraditórios (por exemplo, o livro não é consistente sobre Shaitan e Azazel serem totalmente distintos ou não) ocasionalmente surgem porque estamos tentando falar sobre realidades espirituais que são difíceis de colocar em palavras. E não importa como alguém coloque em palavras no final, o resultado é parcialmente preciso e parcialmente enganoso. Portanto, não acho que seja um vício ter múltiplas narrativas/maneiras de articular a realidade espiritual de alguém.

Novamente, eu entendo se a reputação da editora é um obstáculo para alguns quando se trata de querer se envolver com este material. Nem sou insensível a justificativas pelas quais pode não valer a pena se envolver (se for totalmente fictício) ou apropriado se envolver (se for "fechado"). No entanto, eu gostei deste livro consideravelmente mais do que a vasta maioria dos outros livros do tipo "Satanismo Teísta" ou do Caminho da Mão Esquerda que li nos últimos anos. Portanto, se algo que eu discuti aqui o intriga, sugiro que fique de olho.

ORIGINAL

https://othaos.com/the-dark-sufism-of-the-black-path/

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