Por Michael Osiris Snuffin (2001). Tradução de Ícaro Aron Soares.
Em seu comentário sobre O Hierofante em O Livro de Thoth, Crowley afirma:
“Há um aspecto distintamente sádico nesta carta; não de forma anormal, uma vez que deriva da Lenda de Pasífae, o protótipo de todas as lendas dos Deuses-Touros. Elas persistem em religiões como o Shaivismo e (após múltiplas degradações) no próprio Cristianismo.” [NOTA 1]
Conforme seu estilo usual, Crowley não menciona mais nada sobre este assunto, deixando a investigação desta observação quase casual para o leitor curioso. Então, qual é o significado da Lenda de Pasífae e qual é sua relevância para o Hierofante e o Novo Aeon? A resposta está espalhada entre os escritos de Crowley; mas primeiro vamos recontar a Lenda de Pasífae em si.
A Lenda se passa na antiga Creta, onde o deus Poseidon envia ao Rei Minos um lindo touro branco do mar para oferecer como sacrifício ao deus. O Rei Minos fica tão impressionado com a beleza deste touro que o mantém, sacrificando um de seu próprio rebanho em seu lugar. Suas ações enfurecem e ofendem Poseidon, que pune Minos fazendo com que sua esposa Pasífae se apaixone perdidamente pelo touro branco. Com a ajuda de Dédalo, que constrói para ela uma vaca de madeira coberta com couro de verdade, ela copula com o touro e concebe o monstruoso Minotauro.
Há pouca menção à Pasífae nas obras de Crowley, mas os comentários e análises que podemos encontrar são muito esclarecedores. Em O Trabalho de Paris, Crowley estabelece o conceito geral por trás da Lenda conforme ele a interpreta:
“Esta é a grande ideia dos magos em todos os tempos:–
Obter um Messias por alguma adaptação do processo sexual.
Na Assíria, eles tentaram com o incesto; também no Egito; os egípcios tentaram com irmãos e irmãs, os assírios com mães e filhos. Os fenícios tentaram com pais e filhas; os gregos e sírios principalmente com a bestialidade. Essa ideia veio da Índia. Os judeus tentaram fazer isso por métodos de invocação. Os maometanos tentaram com a homossexualidade; os filósofos medievais tentaram produzir homúnculos fazendo experimentos químicos com sêmen.
Mas a ideia básica é que qualquer forma de procriação diferente do normal provavelmente produzirá resultados de caráter mágico.
Ou o pai da criança deve ser um símbolo do sol, ou a mãe um símbolo da lua.” [NOTA 2]
Crowley continua a vincular esse conceito com a Lenda de Pasífae:
“CERIMÔNIAS DE PRIMAVERA EM CRETA
Havia um labirinto ali; eles tinham a adoração de Ápis do Egito.
Havia um touro sagrado neste labirinto, bem branco. No festival da primavera, eles sacrificavam (a virgindade de) doze virgens para ele.
‘Aqui o ato brutal surgia: Pasífae
sendo coberta pelo touro no lugar da vaca’
- Eneida VI
Eles queriam um Minotauro, uma encarnação do sol, um Messias. Eles disseram que tinham um, mas não tinham.” [NOTA 3]
Aqui a Lenda de Pasífae é dada por Crowley como um exemplo histórico de “procriação diferente do normal.” Há referência ao touro branco sagrado, assim como ao touro Ápis que era adorado no Egito, outra “lenda dos deuses-Touros.” A virgindade de doze mulheres era sacrificada a cada primavera na esperança de que uma delas desse à luz um Minotauro, uma prole de “caráter mágico.”
A ideia de que “ou o pai da criança deveria ser um símbolo do sol, ou a mãe um símbolo da lua” também é apoiada pela Lenda de Pasífae. O nome grego real do Minotauro era Astério, que significa "do Sol", e Pasífae, "aquela que brilha para todos", era originalmente uma deusa cretense da Lua. [NOTA 4] As virgens são doze em número para representar os doze signos do zodíaco pelos quais o Sol viaja em sua jornada anual, sugerida aqui como começando na primavera com a constelação de Touro.
Atu V - O Hierofante.
Este simbolismo da Lenda de Pasífae também é encontrado no trunfo do Hierofante. O Hierofante é Osíris, ou, tomado em contexto com o touro que o sustenta, Serápis. O touro está focado nos lombos da Mulher, que é Ísis, segurando o crescente lunar que a identifica com a Lua. É essa relação entre o touro e a Mulher que constitui o "aspecto distintamente sádico desta carta".
A Lenda de Pasífae também é interpretada no início do 16º Aethyr de A Visão e a Voz, onde começamos a entender sua relevância:
“Há imagens tênues e bruxuleantes em uma paisagem enevoada, todas muito transitórias. Mas a impressão geral é de um nascer da lua à meia-noite e uma virgem coroada montada em um touro.
E elas sobem à superfície da pedra. E ela está cantando um cântico de louvor: Glória àquele que tomou sobre si a imagem do trabalho. Pois pelo seu trabalho é meu trabalho realizado. Pois eu, sendo uma mulher, desejo sempre me acasalar com alguma besta. E esta é a salvação do mundo, que sempre sou enganada por algum deus, e que meu filho é o guardião do labirinto que tem setenta e dois caminhos.” [NOTA 5]
A mulher que fala é Pasífae, que usa uma coroa como a Rainha de Creta. O símbolo do próprio Touro foi originalmente identificado com o Sol e era sagrado para Apolo. Seu filho é o Minotauro Astério, que é "do sol". O labirinto do qual ela fala é o céu, que é dividido nas 72 quinâncias do zodíaco pelas quais o Sol passa em um ano.
O comentário sobre esta passagem do 16º Aethyr aponta para uma representação moderna da Lenda de Pasífae, a ser encontrada no Tarô de Crowley:
"Esta referência é a Pasífae e ao Minotauro. Todas as mitologias contêm este Mistério da Mulher e da Besta como o Coração do Culto. Notavelmente, certas tribos no Teraje, neste dia, enviam suas mulheres anualmente para a selva; e quaisquer meio-macacos resultantes são adorados em seus templos. O Atu XI exibe este mistério; e é o assunto de referência constante nos Aires superiores.” [NOTA 6]
Atu XI - A Luxúria.
O Atu XI mostra uma mulher montada em um leão-besta, uma imagem quase idêntica à do 16º Aethyr. A elucidação desta carta no Livro de Thoth explica a Lenda de Pasífae em termos do novo Aeon:
“O mistério central naquele Aeon passado era o da Encarnação; todas as lendas de homens-deuses foram fundadas em alguma história simbólica desse tipo. O essencial de todas essas histórias era negar a paternidade humana ao herói ou homem-deus. Na maioria dos casos, o pai é declarado como um deus em alguma forma animal, o animal sendo escolhido de acordo com as qualidades que os autores do culto desejavam ver reproduzidas na criança.
“Assim, Rômulo e Remo eram gêmeos gerados em uma virgem pelo deus Marte, e foram amamentados por uma loba. Nisso toda a fórmula mágica da cidade de Roma foi fundada.
“Já foi feita referência neste ensaio às lendas de Hermes e Dionísio.
“O pai de Gautama Buda era dito ser um elefante com seis presas, aparecendo para sua mãe em um sonho.
“Há também a lenda do Espírito Santo na forma de uma pomba, impregnando a Virgem Maria. Há aqui uma referência à pomba da Arca de Noé, trazendo boas novas da salvação do mundo das águas. (Os moradores da Arca são o feto, as águas o fluido amniótico.)
“Fábulas semelhantes podem ser encontradas em todas as religiões do Aeon de Osíris: é a fórmula típica do Deus Moribundo.
“Nesta carta, portanto, aparece a lenda da mulher e do leão, ou melhor, do leão-serpente. (Esta carta é atribuída à letra Teth, que significa serpente.)
“Os videntes nos primeiros dias do Aeon de Osíris previram a Manifestação deste Aeon vindouro no qual vivemos agora, e eles o consideraram com intenso horror e medo, não entendendo a procissão dos Aeons, e considerando cada mudança como uma catástrofe. Esta é a interpretação real e a razão para as diatribes contra a Besta e a Mulher Escarlate nos capítulos XIII, XVII e XVIII do Apocalipse; mas na Árvore da Vida, aquele caminho de Gimel, a Lua, descendo do mais alto, corta o caminho de Teth, Leão, a casa do Sol, de modo que a Mulher na carta pode ser considerada uma forma da Lua, completamente iluminada pelo Sol, e intimamente unida a ele de tal forma a produzir, encarnada em forma humana, o representante ou os representantes do Senhor do Aeon.” [NOTA 7]
Aqui a Besta e a Mulher Escarlate são dadas como manifestações modernas dos elementos da Lenda de Pasífae. Elas são identificadas com o Sol e a Lua em O Livro da Lei:
“Agora sabereis que o sacerdote e apóstolo escolhido do espaço infinito é o príncipe-sacerdote a Besta; e em sua mulher chamada Mulher Escarlate todo o poder é dado. Eles reunirão meus filhos em seu rebanho; eles trarão a glória das estrelas aos corações dos homens.
“Pois ele é sempre um sol, e ela uma lua. Mas para ele é a chama secreta alada, e para ela a luz das estrelas curvada.” [NOTA 8]
O último verso também identifica a Besta com Hadit (a chama secreta alada) e a Mulher Escarlate com Nuit (a luz das estrelas curvada). Eles são igualmente descritos no Liber Reguli como “os emissários terrestres daqueles Deuses.” [NOTA 9] Esse também é o papel do Sacerdote e da Sacerdotisa da Missa Gnóstica.
É digno de nota que todas as entidades masculinas de Thelema recebem formas animais, cada uma de caráter solar: Hadit como a “serpente alada de luz” [NOTA 10], Hórus como o “Senhor do Silêncio e da Força com Cabeça de Falcão” [NOTA 11], e a Besta como a Serpente-Leão. Cada um é um símbolo do Sol, o pai essencial em cada uma das interpretações de Crowley da Lenda de Pasífae.
Assim, a Lenda de Pasífae se manifesta em nosso Novo Aeon de Hórus, conforme expresso pelos escritos de Aleister Crowley. Bênção e adoração ao profeta da adorável Estrela!
Notas
1 The Book of Thoth, página 79.
2 The Equinox, Vol, 4, No. 2, páginas 386-387.
3 Ibid. Note que a citação da Eneida apareceu originalmente em grego no texto de Crowley; por conveniência, dei a tradução de Robert Fitzgerald incluída nas notas da versão do Equinox 4:2.
4 Veja Robert Graves, Os Mitos Gregos, para mais informações sobre a base histórica das Lendas de Pasífae e do Minotauro.
5 Equinox Vol. 4, No. 2, página 125.
6 Ibid, nota de rodapé 3.
7 O Livro de Thoth, páginas 93-94.
8 Livro da Lei 1: 15-16.
9 Liber ABA, página 566.
10 Livro da Lei 3:38.
11 Livro da Lei 3:70.
Copyright © 2010 Michael Osiris Snuffin
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