Perspectiva Angular: A História do Satanismo Tradicional - II

Uma Breve História da Ordem dos Nove Ângulos.

Por Melmothia. Tradução de Ícaro Aron Soares.

Leia a Primeira Parte.

Labirinto Lexical

Seguindo a história mítica da ONA, após a partida de sua fundadora para a Austrália, Anton Long/David Myatt teria assumido a direção da ordem e codificado seus ensinamentos.

O desenvolvimento de um volumoso corpus de textos andou de mãos dadas com a criação de um vocabulário específico da ordem. Como diz o prefácio do Glossário:

“A Ordem dos Nove Ângulos tem seu próprio léxico, provavelmente confundindo o leitor. A manipulação do vocabulário e da sintaxe é de fato uma das características salientes da abordagem ONA desde as suas origens. Assume diversas formas: utilização de expressões arcaicas ou formas nominais, de etimologia mais ou menos obscura (ex.: Rounwytha, Thernning, Kunnleik etc.); a “apropriação indébita” de certos conceitos (ex.: Wyrd, cujo significado difere ligeiramente daquele a que se refere na tradição nórdica); a constante retomada de conceitos inicialmente desenvolvidos por David Myatt (e.g. Pathei-Mathos, Anados etc.); a criação de novas palavras-chave (ex.: Balobianos); o uso de palavras estrangeiras que se referem implicitamente a um ambiente intelectual específico (por exemplo, Opfer, Übermensch etc.); a modificação deliberada da sintaxe de certas palavras (ex.: “subserviância” em vez de “subserviência”) [1].

Satanismo Tradicional

Para designar o seu sistema, a Ordem dos Nove Ângulos escolherá as expressões Tradição Sinistra [2] e Satanismo Tradicional, em oposição ao Satanismo Moderno, ateísta, racionalista e politicamente correto da Igreja de Satan. Uma das características salientes desta ordem é que ela promove o satanismo radical, em oposição a outras organizações que afirmam ser satanistas. Enquanto a Igreja de Satan ou o Templo de Set defendem o respeito pela vida, humana e animal, e mais geralmente pela lei, a Ordem dos Nove Ângulos louva as atividades criminosas e defende os sacrifícios rituais:

“Devido ao fato da infinidade de satanistas de opereta que abundam hoje em dia (especialmente na América), tornou-se necessário pronunciar-se claramente sobre o que realmente é Sacrifício e “comportamento criminoso” no satanismo autêntico […]. No satanismo autêntico o sacrifício é admitido e considerado, de fato, necessário. Antigamente, isso dizia respeito a animais e humanos. Hoje, porém, trata-se apenas de sacrifícios humanos, devido à abundância de exemplares aptos ligados ao aumento do número de rejeitos.

O sacrifício é aceito como uma prática satânica por vários motivos. Em primeiro lugar, permite testar a personalidade satânica de um indivíduo: matar alguém (com as próprias mãos, por exemplo) é uma experiência que forma o caráter e permite desenvolver certas qualidades (como a engenhosidade na execução e no planeamento). Em segundo lugar, produz benefícios mágicos. Terceiro, permite-nos distinguir os satanistas da opereta dos reais” [3].

O Caminho Septenário

Para produzir esses satanistas “reais”, a ONA oferece um sistema de treinamento mágico e prático em sete estágios, chamado Caminho Septenário, que supostamente transforma o adepto de acordo com um princípio de alquimia interna. Esses estágios são: Iniciação, Segundo Grau de Iniciação, Adeptado Externo, Adeptado Interno, o grau de Mestre/Senhora (ou Sumo Sacerdote/Sacerdotisa), o grau de Magnus e o de Imortal.

Cada classificação está associada a uma esfera da Árvore de Wyrd e inclui um certo número de tarefas a serem concluídas. Esta árvore é um modelo composto por esferas e caminhos que ligam essas esferas, todos acompanhados de associações simbólicas (alquimia, astrologia, tarô, etc.).

Podemos assim ler no Naos: “Cada estágio está associado a uma esfera da Árvore Septenária de Wyrd e a certos símbolos. Por exemplo, o primeiro estágio está ligado à esfera da Lua e associado ao Quartzo, ao processo alquímico de calcinação, ao termo Nox e às três cartas do Tarô (18 - a Lua, 15 - Lúcifer e 13 - Morte)" [4]. Quanto às tarefas do grau, elas geralmente envolvem testes difíceis e às vezes perigosos. Assim, o grau de Adepto Interno exige o domínio do Jogo Estelar, seguido da conclusão com sucesso do Ritual do Grau de Adepto Interno que consiste em viver na natureza, por um período de três meses, sem contato humano ou meios de comunicação. Outras provas são claramente físicas, como pedalar 300 km ou correr 50 km. De modo geral, a ênfase está no autoaperfeiçoamento, no elitismo e no pathei mathos, termo grego que pode ser interpretado como “aprender através da adversidade e do sofrimento”.

Insight Roles - Papéis de Introspecção

Outro exemplo de tarefa, desta vez a ser realizada por adeptos da categoria de Iniciado, consiste em assumir um Insight Role, expressão que pode ser traduzida aproximadamente como "papel de introspecção", “papel de perspectiva” ou “papel inteligente”. Esta tarefa exige que o indivíduo invista plenamente, durante um determinado período de tempo, num “papel” específico que seja o oposto da sua personalidade – o que envolve mudar radicalmente o seu estilo de vida, mentir aos que lhe são próximos e muitas vezes correr riscos, com os seguidores sendo encorajados a se envolverem em papéis relacionadas ao ativismo extremo ou ao crime:

“Os insight roles são um elemento indispensável do Caminho Septenário […]. Este insight role, que deve durar pelo menos um ano (ou seja, uma estação alquímica específica), deve ser escolhido de tal forma que a tarefa empreendida seja radicalmente oposta à personalidade do Iniciado […]. Por exemplo, um indivíduo em conflito com a autoridade pode escolher um insight role que envolva servir a polícia ou o exército, assim como alguém que desfruta dos prazeres da carne ou da violência pode escolher tornar-se budista ou outro tipo de monge […]. Outro insight role, que pode ser adequado para uma pessoa desinteressada por política ou que não tem inclinação para a violência, pode consistir em envolver-se num movimento político radical […]. Um imperativo muito importante em relação aos insight roles é que o Iniciado não deve revelar a ninguém, nem mesmo a amigos próximos ou familiares, as razões dessas mudanças em sua vida […]. Entre os melhores insight roles estão aqueles que favorecem a dialética sinistra: isto é, as tarefas realizadas cumprem objetivos sinistros, ao mesmo tempo que desenvolvem a experiência do Iniciado. Estes papéis envolvem o investimento em grupos políticos (ou religiosos) que realizam atos que levam ao colapso da sociedade – por exemplo, crimes (venda de drogas), assassinato de vítimas apropriadas, e assim por diante [5].

Universo Acausal e Deuses Obscuros

Para compreender a dialética sinistra aqui mencionada e seu corolário, a Magia Aeônica, é necessário fazer um desvio pela visão da realidade defendida pela ONA e sua definição de magia. Estas supõem a existência de um universo paralelo ao nosso e que não obedece às mesmas leis. A energia proveniente deste universo ou continuum, denominado “acausal”, permitiria a realização de atos mágicos e, de forma mais ampla, seria o que anima toda a vida em nosso mundo:

“Este universo acausal constitui uma parte do cosmos, que abrange a totalidade do causal e do acausal. “Causal” significa o universo descrito ou representado pelo espaço e tempo causal. O universo causal é o nosso universo físico e fenomenal atualmente descrito por ciências como a física e a astronomia. O universo acausal é não-euclidiano e está “além do tempo causal”. Em outras palavras, é impossível representá-lo usando nossa geometria causal limitada (três dimensões em ângulos retos) e por fluxo, variações do tempo causal (passado, presente, futuro) ou por medidas de tempo comuns. Além disso – e tal como a energia causal existe no universo causal (a energia tal como a entendemos na física) – a energia acausal existe no universo acausal. É de uma natureza que não pode ser descrita por ciências como a física (baseada na geometria e no tempo causais)”[6].

Este continuum acausal é povoado por entidades, algumas das quais podem manifestar-se no nosso universo causal, nomeadamente aquelas conhecidas sob o nome de “Deuses Obscuros”:

"De acordo com a Tradição Sinistra da ONA, os Deuses Obscuros [Deuses Sombrios, Deuses das Trevas ou Os Obscuros] são entidades particulares - seres vivos de uma espécie acausal específica - que existem nos reinos acausais, algumas dessas entidades sendo manifestadas na Terra, através de vários nexions, em nosso passado distante. Esses seres são metamorfos e podem aparecer como diversas formas de vida, no universo causal, inclusive na forma humana […]. A tradição oral da ONA afirma que Baphomet (a entidade feminina conforme descrita pela ONA) e Satan são memórias e manifestações de dois seres particulares do universo acausal, dois Deuses Obscuros. Pela natureza do acausal, essas entidades são percebidas – de nossa própria perspectiva causal limitada e mortal – como “sem forma”, sem idade e eternas, mesmo que quando se aventuram nas dimensões causais, as formas que adotam estejam sujeitas a influências causais. Isto resulta, por exemplo, na necessidade de retornarem ao universo acausal ou de encontrarem regularmente uma fonte de energia acausal (no universo causal)” [7].

A circulação entre os universos causal e acausal ocorre através de portais chamados “nexions” — termo que, no vocabulário da ONA, possui dois significados distintos: primeiro, designa um Templo ou grupo de seguidores seguindo o caminho e os ensinamentos da Ordem dos Nove. Ângulos. Em segundo lugar, refere-se a um portal entre o causal e o acausal através do qual os fluxos de energia e/ou as entidades podem circular.

Na Tradição da ONA, “magia” corresponde à manipulação da energia acausal, envolvendo ou não interação com entidades que habitam o continuum acausal. A ordem distingue vários tipos de magia incluindo: magia interna (visando a transformação interna e evolução do adepto, em particular o desenvolvimento de habilidades esotéricas); magia externa (usada para satisfazer os desejos de um indivíduo no universo causal); magia cerimonial; finalmente, a Magia Aeônica, ou seja, a possibilidade de influenciar os próprios “aeons”. Porque a ONA não só afirma transformar os indivíduos para torná-los “super-homens”, mas também acelerar a evolução da civilização, por exemplo, permitindo que os Deuses Obscuros venham (ou regressem) à nossa realidade, a sua libertação no mundo supostamente levando ao caos, evolução brutal e a partir daí, o início de uma novo aeon:

Magia Aeônica

“A aeônica é uma forma de magia específica da ONA dedicada à história e à política. As ideias de Myatt sobre este tópico foram inspiradas na leitura do Estudo da História do historiador Arnold Toynbee, onde ele afirmou que toda civilização passa por um ciclo orgânico de crescimento, desafio, maturidade e declínio. Adaptando este esquema à sua visão mágica do mundo, Myatt faz do “aeon” a manifestação temporal da energia acausal expressa nos arquétipos e cultos religiosos particulares de cada civilização […]. O Estado Universal – ou Imperium – do Ocidente, que Myatt associa ao regresso do nazismo, deverá começar entre 1990 e 2011 e durar até 2390.

Este futuro imperial está comprometido pela intrusão de uma energia mágica estranha e hostil aos arquétipos do aeon do Ocidente. Myatt toma emprestadas as noções de “alma dos magianos” de Oswald Spengler e de “distorção cultural” judaica de Francis Parker Yockey. A interferência dos "magianos" numa cultura faustiana resultou numa inversão de atitudes heroicas, confiantes e vigorosas, para a adoção de sentimentos e ideias baseadas na ansiedade, na culpa e na deferência aos inferiores. Myatt argumenta que o ethos “nazareno/magiano” produziu a fé e o dogma cristãos, abstrações morais e políticas, em vez do envolvimento na ação e na experiência real do mundo. Diz-se que este chamado espírito negativo influenciou de forma mórbida a civilização ocidental […] opondo-se ao cumprimento do destino do Ocidente como um Imperium. […] O comunismo marxista e a psicologia freudiana, a ascensão das ciências sociais, a abstração e a feiura da arte moderna, a música atonal e a contracultura dos anos 1960, têm dois fatores em comum: todos, direta ou indiretamente, contradizem o ethos faustiano e assertivo do Ocidente […]. O retorno aos antigos e verdadeiros valores do Ocidente verá a chegada de um Vindex, uma figura vingativa de César, que estabelecerá o Imperium. Além desta era existe um novo aeon galáctico, uma época de aventura prometeica envolvendo viagens espaciais e colonização interestelar” [8].

Stargame - O Jogo Estelar

Porque, não contentes em querer tornar-se super-homens, os seguidores da ONA olham para as estrelas, algumas das quais são elas próprias pontos de entrada para a dimensão acausal. Uma das primeiras contribuições intelectuais de David Myatt para o grupo parece ter sido a invenção do Jogo Estelar, desenvolvido durante duas estadias na prisão e descrito pela primeira vez no livro Naos: Um Guia Prático para a Magia Moderna. Chamado em inglês de Stargame, este jogo tridimensional é apresentado como uma pilha de tabuleiros, cada um com um tabuleiro de xadrez e com o nome de uma estrela. Nestes tabuleiros, colocados uns sobre os outros em espiral, os jogadores moverão peças marcadas com símbolos alquímicos, referindo-se em particular aos diferentes tipos de personalidade descritos por Jung. Uma das características do Jogo Estelar é que a cada movimento as peças mudam de natureza. Por exemplo, uma peça natural “Mercúrio/Enxofre” se tornará uma peça “Enxofre/Sal” após um movimento.

No corpus iniciático da ONA, a produção e o domínio deste jogo complexo fazem parte das tarefas exigidas para determinadas progressões de grau e asseguram diversas funções, nomeadamente a de permitir a simbolização da personalidade de um indivíduo, mas também a modelação da essência de uma civilização e sua transformação por meio da magia.

O Ethos

Além das provas iniciáticas, o Caminho Septenário implica um certo código de conduta, justamente um “ethos”, um modo de ser, combinando excelência física e intelectual, exaltação da personalidade, elitismo, honra de clã, aceitação do pathei-mathos, etc. . :

“Nossa Wyrd, ou seja, nossa verdadeira natureza como seres humanos capazes de participar conscientemente de nossa própria evolução e da do cosmos, é manifestada principalmente, de forma concreta, por nossas tribos guerreiras sinistras […]. Para conseguir isso, é necessário viver numa relação simbiótica com outros membros da nossa espécie, para criar um equilíbrio entre a nossa individualidade única e a necessária cooperação natural e numinosa (honrosa) com os outros, como parte da nossa própria família tribal, permitindo que cada Wyrd individual se materialize e progrida” [9].

Uma valsa febril entre o individualismo e a mentalidade de clã que não é o menor dos paradoxos da ONA e pode muito bem marcar a entrada para um dos muitos fossos de crocodilos do labirinto.

Melmothia, 2016-2017.

Notas:

[1] “Algumas palavras sobre o vocabulário da ONA”, Glossário da Ordem dos Nove Ângulos, no site Rat Holes. Fizemos numerosos cortes nesta passagem, não indicados para não complicar a leitura. Convidamos o leitor a ler todo este prefácio online.

[2] O termo latino sinister significa “quem está à esquerda, quem está à mão esquerda” com a coloração “desfavorável, desastroso, fatal”. Em francês, evoluiu para “sénestre” e “sinistre”, enquanto o inglês continua a usar sinister com ambos os significados. Optamos por traduzir por “sénestre”, em referência ao Caminho da Mão Esquerda, mas outros tradutores preferem o mais conotado “sinistro”.

[3] Hysteron Proteron – Os Ensinamentos Internos da ONA, 1992.

[4] NAOS: Um Guia Prático para Magia Moderna, Thorold West (David Myatt), 1990.

[5] “Uma Introdução aos Insight Roles”, Ordem dos Nove Ângulos, 119 Ano de Fayen.

[6] Glossário da ONA. No site Rat Holes.

[7] “Os Mitos dos Deuses Obscuros: Seres das Trevas Acausais”, Anton Long, ONA, Ano de Fayen 119.

[8] Sol Negro: Cultos Arianos, Nazismo Esotérico e Política de Identidade, Nicholas Goodrick-Clarke, Camion Noir, 2007.

[9] “As Tribos Sinistras e a Tirania do Estado – Uma Breve Diatribe”. No site Rat Holes.

ORIGINAL

https://www.chaosophie.net/2016/05/perspective-angulaire-2/

Comentários